Escravos de vários donos
E quando temos vários donos? Não é escravidão?
De acordo com o art. 149 do Código Penal Brasileiro, o trabalho análogo a de escravo é caracterizado pela submissão de alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Marcel (nome fictício) é entregador de aplicativo. Ele tinha uma moto, comprada com as reservas que guardou do fundo de garantia de seu último trabalho no almoxarifado de uma empresa internacional.
Durante uma blitz sua moto foi apreendida. A moto que Marcel conseguiu comprar com o FGTS era "moto para rodar", sem documento e montada a partir de pedaços de motos de origem duvidosa.
Ele tem uma filha, de três anos, e se separou da mulher pouco depois de ser demitido, ano e meio atrás.
Marcel paga um salário mínimo de pensão para a filha. Mas com a moto apreendida acabou usando o cartão de crédito parcelado para comprar uma bicicleta e continuar com as entregas. Ele mora no Jardim João XXIII, tem de pegar a Rodovia Raposo Tavares de bicicleta para poder chegar no largo de Pinheiros e começar suas entregas na região.
Conheci o Marcel quando ele estava se recuperando de um atropelamento na rodovia. A UPA não pode atender, e ele foi encaminhado para o Hospital Universitário da USP. Estava inconsciente, e delirou um pouco depois do acidente, pois não usava capacete e bateu a cabeça.
Quinze dias depois do acidente o Marcel voltou ao trabalho, mas sem a bicicleta pois deu perda total no acidente. Teve de alugar uma bicicleta de aplicativo.
Neste momento Marcel tem dívidas no cartão de crédito (que precisa pagar), depende de trabalhar todo dia para poder receber parcialmente a entrega (parte do valor vai para o aplicativo), corre o risco de ser preso por não ter conseguido pagar a pensão da filha e entra na fila da entrega de marmita que as ONGs oferecem no bairro onde trabalha para poder comer.
A pergunta é: Só é trabalho análogo à escravidão quando temos um e exclusivamente um empregador? Pergunto pois o Marcel não tem um empregador, mas ele precisa pagar muito mais do que ganha para o aplicativo, para o banco e para a justiça. E não tem acesso à planos de saúde.
Devemos chamar o Marcel de empreendedor? É isto? E que ele não tem ganhado dinheiro e prosperado pelo fato dele não estar se esforçando o suficiente?
Será que falta ao Marcel "ter pensamento positivo", "acreditar no sucesso"?
O que falta ao Marcel?
Alessandro Bender 2023