Os pais que não poderão ver seus filhos voarem

A hipervalorização do indivíduo em detrimento do social e o excesso de individuação na cultura do consumo gerou um subproduto com o qual teremos de lidar: Não há mais a possibilidade de ver nossos filhos sairem voando.

Alessandro Bender
5 min readFeb 28, 2021

Que vivemos numa sociedade que cultua o indivíduo em detrimento do coletivo me parece uma coisa que todos concordam. É possível enxergar isto na desvalorização de tudo o que é público, ou comum. Basta olhar nossas calçadas esburacadas, o lixo jogado nas ruas ou as pessoas em que votamos para serem nossos representantes.

Há uma outra questão que aparece de forma velada por trás deste cenário. Mais do que exista uma Cultura do indivíduo — como podemos ver nas redes sociais — queremos ser especiais, mas não toleramos o diferente. Os ricos e a classe média se refugiam em bolsões onde só convivem consigo mesmos, deixando os espaços ditos sociais para os pobres e miseráveis (mesmo assim não toleramos quando estes espaços são oficialmente ocupados por eles, queremos os pobres circulando pelas ruas, e não se apropriando delas. (Aquelas mesmas que não frequentamos).

O que é Ser Diferente?

É não compartilhar os mesmos valores, não ter a mesma base cultural e aspiracional.

Se você é jovem, faça um teste e vai entender: Chegue para seus pais e diga que pretende cursar uma faculdade como Filosofia, por exemplo.

Dentro da narrativa construída é difícil compreender por que alguém queira fazer uma faculdade que não abre portas para algo valorizado. Diga para seus pais que quer ser professor, ou artista.

"Mas é claro que os pais vão se espantar, ora bolas. Que futuro pode ter um artista, ou um estudante de filosofia"?

Então, quando você fala de Futuro está incluindo uma grande narrativa que já ouvi de vários alunos meus em cursos de graduação.

Entrar no Vestibular >Curtir a Juventude > No meio da Faculdade arranjar um estágio > Começar a Namorar a Sério > Terminar a Faculdade > Ser efetivado no trabalho > Carro >Noivar > Juntar dinheiro para comprar um imóvel > Casar, etc.

Ser diferente é não se encaixar em nenhuma destas etapas por qualquer razão. Ou pelo fato de você ser pobre ou parte de uma minoria e não ter acesso a nada, ou por você não ser aceito em nenhuma destas etapas por alguma razão. Ou simplesmente pelo fato de você não entender a existência dessa maneira linear, dos valores que envolvem cada parte do processo e do processo como um todo*.

O que é Ser Especial?

É querer ser tratado como cliente pelo mundo, é compreender as relações de prestação de serviço com mentalidade colonialista, escravagista. É valorizar excessivamente aquilo que nos diferencia, ao invés de enxergar aquilo que nos é comum. É querer privilégios, velados ou não. É ser incapaz de enxergar as diferenças, tolerá-las ou aceitá-las. É não ver na diferença a possibilidade de aprendizagem e de abertura para novas possibilidades. Em suma, faz parte de um estreitamento no horizonte hermenêutico.

Os Incríveis, da Pixar

Um mundo de Pessoas Especiais

O paradoxo de pretendermos viver num mundo de pessoas Especiais é brilhantemente apresentado na animação Os Incríveis, da Pixar.

Diante do fato de não ter nascido com nenhum dom ou habilidade que o tornasse um Super Herói, o objetivo do vilão do filme é transformar todos em Super Heróis, pois assim "quando todos forem especiais, ninguém é especial".

A maneira de negação da banalidade existencial, do cotidiano e suas mazelas estruturais e da Vida Comum se tornou um mantra nas famílias. É quase como disséssemos para nossos filhos:

"Nós estamos aqui, cuidando da vida e de suas chatices, mas prepare-se pois você é Especial, e o mundo será o palco para a sua existência gloriosa".

Esta negação da banalidade e do comum gera uma série de problemas na formação dos jovens. Da mesma maneira que existe uma data limite para que conversemos com nossos filhos que o Papai Noel não existe, talvez esteja faltando um momento em que avisemos para eles que o mundo não é um palco criado especificamente para eles. E que eles não são especiais.

Para o filho há uma incompreensão ao se confrontar com os espaços públicos e coletivos. Por que será que os outros não compreendem que ele é uma Pessoa Especial? E este estranhamento leva a uma conclusão: o único lugar onde sou especial é no meu Ninho, no núcleo familiar.

Obviamente os jovens percebem que o mundo não é exatamente um palco para eles. Mas esta conclusão aparece como uma sombra, um Homem do Saco (o que na classe média aparece como a figura do Ladrão, aquele que vem roubar nossos objetos que são a realização de nossa linearidade existencial como meus alunos da gradução almejam). O Diferente surge como algo que irá atrapalhar meu mundo, não ajudar a construir. Passamos a ter medo do Diferente pelo fato dele ser plural e inesperado.

Para os pais o problema é a entrega: Como realizar o sonho que foi vendido para o filho?

Os pais obviamente sabem que o mundo não é assim, por mais que neguem. Esta energia dedicada a construção da Utopia do Filho Especial leva a um conflito sistemático com o mundo, quase como o filme A Vida é Bela, só que ao contrário. Como se o personagem do Roberto Benigni tentasse mostrar para o filho um grande playground de um condomínio fechado quando passam pelas praças e ruas da cidade. E isto se acentua com a Pandemia, quando oficialmente pulamos de um desejo de Utopia para uma Distopia digna do seriado Black Mirror.

A conta a ser paga é que esta dinâmica Pais e Filhos nunca poderá acabar. Ela precisa se perpetuar para que mantenhamos o pacto que fizemos ao construir a expectativa da Especialidade com nossos filhos.

Enquanto não conseguirmos mostrar o Diferente para eles o Ninho continua sendo o único lugar onde funciona aquela lógica, e de onde é possível enxergar com o telescópio qual seria o mundo das Pessoas Especiais.

Você sairia do Ninho das Pessoas Especiais para cair num mundo onde você perde seus super poderes e passa a ser qualquer um?

O número de jovens que continuam morando no Ninho só cresce. O período definido pelos pesquisadores de quando começa e quando termina a adolescência hoje vai de 11 a 25 anos, e a tendência é que compreendamos a adolescência (uma das criações de nossa sociedade) aumente até 30 anos ou mais.

Até quando evitaremos que nossos filhos saibam que eles não são especiais?

Alessandro Bender, fevereiro 2021.

*Isto vale para todas as pessoas que não aceitam este modelo ou simplesmente são excluídos estruturalmente por ele.

--

--

Alessandro Bender

pesquisador do comportamento humano, tendências e arte